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Caneca de Letras

22.06.19

 

O som do piano vai continuando a percorrer os corredores da casa, como se ainda nele tocassem, como se ainda a luz invadisse aquelas paredes, como se ainda aqueles cortinados fossem descerrados, como se ainda vida por ali existisse.

Nada mais do que o silêncio sobrevive ao tempo, àquele tempo que decorreu entre os radiosos anos que se extinguiram.

O som do piano, agora corcomido e velho, parece ganhar a batalha da eternidade, da solitária eternidade por entre aquelas bafientas paredes, onde só o pó parece reinar.

Nem mãe nem pai, muito menos avós ou amigos, filhos ou netos, jantares ou almoços, risos ou lágrimas...

Escuridão, arrebatadora escuridão, que se impõe esvoaçando entre o relógio de pé, parado nas horas, no tempo, sem asa ou momento, altivamente acompanhado pelos frescos no tecto, meio pálidos escondendo as vivas cores que outrora marcavam cada recanto daquele lugar.

Vidas e sonhos ali perdidos, desencontrados, naqueles cantos agora tristonhos, pouco risonhos, meio medonhos, como se aquele quadro não tivesse ali espaço, desabitado regaço de um destino.

Portas trancadas, janelas cerradas, palavras fechadas a todo o custo, encerradas a sete chaves nesse secreto lugar da memória...

Tudo ali tem história, secretamente entrelaçada em outra vida, talvez perdida, numa espécie de despedida eterna, sem fim.

O som do piano vai continuando a ecoar...

Ecoando como se nada mais tivesse importância, como se ainda os bailes ali tivessem lugar, como se ainda eu ali permanecesse.

O barulho das máquinas a chegar, o ruído da manhã a ecoar, as vozes de homens acelerando o epílogo de tantas noites e dias, pequenas melodias que prometiam não findar.

O piano calou-se...

As máquinas começaram a trabalhar e a cada instante insistentemente a derrubar cada parede de minha casa...

Naqueles escombros, por entre aqueles retratos se desvanece a minha empoeirada alma.

Já não toca o piano...

O meu piano deixou de tocar.

 

 

Filipe Vaz Correia

 

 

 

27.12.16

 

O meu piano...

De encontro à janela;

Aguardando a minha alma,

Como se estivesse de sentinela.

 

Aguardando sem tocar;

Esperando calado,

Esse regresso, despertar,

De um tempo e de um passado...

 

Não sinto as minhas mãos;

Queria voltar a sentir,

E contar ao meu coração,

Esse medo de sorrir...

 

Temo o que um dia fui;

Fujo desse reencontro,

Dessas pautas, pautadas,

Imagens passadas...

 

Nessa lágrima, em forma de nota musical;

Sinto a dor na minha mente,

O que sobrou dessa vida,

Desse som, nesse presente...

 

Já não posso mais tocar;

Já não sou um pianista,

Pois tremo sem parar,

Sem as minhas mãos controlar...

 

Dói sem doer;

Esse teu silêncio ruidoso,

Piano meu, quero morrer,

Ao som do teu sorriso...

 

Pois só ele preenche as memórias, dessa vida que um dia foi minha!

 

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