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Caneca de Letras

05.05.21

 

 

 

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Mar acima, mar adentro, na minha jangada de pedra, no meio dessa imensidão de água, azul cristalino que me rodeia, num horizonte longínquo, sem fim.

Na minha jangada de pedra, navego por esse mundo a fora, numa viagem sem fim, por entre o que desconheço, sabendo somente que dentro de minha alma, pulsa a curiosa, curiosidade, de um solitário rapazinho.

Nessa solidão, onde me encontro, nascem e renascem fantasmas e animais, gigantes animais, que submersos aguardam por um instante para se revelarem, desnudarem a face e surgirem como um cabo das tormentas, numa sinuosa vertigem, inesperada.

Continuo a remar, sem olhar para trás, fixamente querendo flutuar sobre as águas, gélidas e ameaçadoras, buscando uma razão para interligar o sentir ao querer, o desejar ao temer, o recordar ao viver...

Sempre navegando, sempre continuando.

No meio desse interminável querer, enfrento medos e receios, perco pedaços de um passado desconhecido, meio perdido, por entre, as lágrimas de outrora...

Lágrimas que se foram embora, antes que delas me pudesse recordar, antes que essa parte de mim, escapasse da razão e partisse juntamente com a emocionada emoção de uma criança.

Eu sei lá, se continuarei a percorrer as águas da imaginação ou se nunca mais irei acordar de tamanho pesadelo, pesado desvelo que me amarra sem calar, que me afoga sem nadar, que se entrelaça numa singela jangada de pedra.

Num momento, tão pequeno, ali estou...

Num outro, tão velho, ali me encontro.

Passou, tudo passou, sem rasuras, sem retornos, sem regressões.

Numa jangada de pedra, comigo levo os livros de minha vida, capítulos sem fim do que vivi, por entre, romance e drama, comédia e ficção, desabafos soletrados que me pertencem.

São os livros de minha vida, contando a minha vida, flutuando nessa jangada de pedra...

Numa jangada de pedra.

Na minha jangada de pedra!

 

 

Filipe Vaz Correia

 

 

 

 

04.12.20

 

 

 

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O som do piano vai continuando a percorrer os corredores da casa, como se ainda nele tocassem, como se ainda a luz invadisse aquelas paredes, como se ainda aqueles cortinados fossem descerrados, como se ainda vida por ali existisse.

Nada mais do que o silêncio sobrevive ao tempo, àquele tempo que decorreu entre os radiosos anos que se extinguiram.

O som do piano, agora corcomido e velho, parece ganhar a batalha da eternidade, da solitária eternidade por entre aquelas bafientas paredes, onde só o pó parece reinar.

Nem mãe nem pai, muito menos avós ou amigos, filhos ou netos, jantares ou almoços, risos ou lágrimas...

Escuridão, arrebatadora escuridão, que se impõe esvoaçando entre o relógio de pé, parado nas horas, no tempo, sem asa ou momento, altivamente acompanhado pelos frescos no tecto, meio pálidos escondendo as vivas cores que outrora marcavam cada recanto daquele lugar.

Vidas e sonhos ali perdidos, desencontrados, naqueles cantos agora tristonhos, pouco risonhos, meio medonhos, como se aquele quadro não tivesse ali espaço, desabitado regaço de um destino.

Portas trancadas, janelas cerradas, palavras fechadas a todo o custo, encerradas a sete chaves nesse secreto lugar da memória...

Tudo ali tem história, secretamente entrelaçada em outra vida, talvez perdida, numa espécie de despedida eterna, sem fim.

O som do piano vai continuando a ecoar...

Ecoando como se nada mais tivesse importância, como se ainda os bailes ali tivessem lugar, como se ainda eu ali permanecesse.

O barulho das máquinas a chegar, o ruído da manhã a ecoar, as vozes de homens acelerando o epílogo de tantas noites e dias, pequenas melodias que prometiam não findar.

O piano calou-se...

As máquinas começaram a trabalhar e a cada instante insistentemente a derrubar cada parede de minha casa...

Naqueles escombros, por entre aqueles retratos se desvanece a minha empoeirada alma.

Já não toca o piano...

O meu piano deixou de tocar.

 

 

Filipe Vaz Correia

 

 

 

25.11.20

 

 

 

Estou sentado no mesmo cadeirão do meu pai...

Do meu avô...

Do meu bisavô.

Estou sentado na mesma sala de estar, com as mesmas janelas, com os mesmos quadros, com a mesma lareira acesa que há tantas gerações, acompanha os destinos da minha família...

Esta casa outrora cheia de vida, de luz, de histórias, onde revejo a correr os antepassados que não cheguei a conhecer, os filhos que tantas alegrias me trouxeram, as noites estreladas que iluminavam o jardim, as vozes que polvilhavam a minha vigorosa alma.

Aqui sentado revejo aquele menino de calções pelos joelhos, descobrindo em cada recanto daquela casa, o mundo imaginário que despertava a mente curiosa dessa minha infância...

Os beijos que troquei com aquela que seria a mulher da minha vida, nessa adolescência tão imberbe e ao mesmo tempo, tão repleta de memórias.

As primeiras certezas, nessa incerta vontade de crescer...

As primeiras tristezas, de um familiar a morrer e as inevitáveis facetas da vida humana.

Sentado neste cadeirão, recordo esses dias e noites, pincelando essa tela, misturando as aguarelas, nessa cor que acabaria por definir o rumo do meu destino...

Nesse quadro inacabado e em constante evolução, por essa estrada que se revelou, na mais bela viagem que algum dia vivi.

Agora aqui estou, sentado sozinho, no meio desta escuridão, apenas com a lareira acesa, as janelas fechadas, as cortinas descerradas e um copo de whisky gelado, aguardando o fim deste caminho...

Nesta casa vazia, despida dessa vida que um dia a preencheu, espero o reencontro com esse passado que apenas vive em mim e nestas paredes cansadas da minha velha casa.

E assim, sentado no cadeirão, que já pertenceu ao meu pai, ao meu avô, ao meu bisavô, aguardo a hora de serenamente partir...

Partindo por entre a última pincelada, colorindo esse quadro, por fim terminado...

Representando em cada traço nessa tela, em cada cor de aguarela, o meu colorido destino.

 

 

Filipe Vaz Correia

 

 

23.11.20

 

 

 

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A noite brilhante, com o seu céu estrelado, que iluminava o imenso lamaçal que tenho de subir...

Atolados os meus pés, numa fuga destemperada por entre este caminho que enfrento sem fugir.

Caminhando, viajante, pelos gostos envelhecidos da sabedoria estampada, nos rostos daqueles que observam o meu destino...

Não o quero saber, continuo a subir em busca da beleza escondida, em cada estrela presa ao imenso céu que contemplo nesta noite cintilante.

Sinto os cheiros daquelas casas vazias, de gente, de cor, com alma...

Contemplo no cimo daquele lugar, a imensidão que por debaixo de mim existe, ignorando os ruídos, os gemidos, as intensas contradições insistentes.

E nesse instante, em cada estrela um sorriso, em cada rosto uma esperança, em cada olhar encontrado, um pedaço de alegria, de vida.

Um pequeno campo de futebol, iluminado por esses candeeiros encardidos, empoeirados, onde rejubilam os meninos, enquanto chutam aquela pequena bola de trapos, como se tratasse da sua maior recompensa...

E se calhar, seria!

Olhei novamente para aquela imensidão, guardando simplesmente na memória, a pequenez dos nossos destinos...

E assim observo a constante rotação daquelas estrelas, que sobrevoam os sonhos daquelas vidas, com aquela lua como companheira, discreta, tímida, presente...

Mas naquele momento, perdido naquela imensidão, aquelas estrelas eram só minhas e do meu desejo de sonhar.

 

 

Filipe Vaz Correia

 

 

06.04.19

 

Um dia claro, num outro dia tudo escuro...

Num momento o mundo meu, num outro momento o mundo desconhecido, sem rostos, sem afagos ou abraços.

Num instante aquele olhar, num outro instante o vazio...

Uma palavra que chega e sossega o coração, num singelo pestanejar a mesma voz inquietando a alma.

Tanta certeza, numa incerta vontade que não controlo, nesse descontrolado destino que se assemelha ao destemperado querer pueril.

Num momento um velho, num outro um recém-nascido, sem forças para expressar tudo o que um dia foi aprendido, num ápice desaprendido.

Estou aprisionado dentro do incógnito esquecimento de mim mesmo, dos meus, de tudo e de todos...

E a cada assomo de recordação, em cada pedaço do que outrora foi construído, um sorriso vitorioso, para em seguida tudo se desvanecer numas trevas infinitas, infinitamente desperançadas.

Alguns chama-lhe Alzheimer, outros despedida...

Eu apenas lhe chamo realidade.

 

 

Filipe Vaz Correia

 

 

13.01.18

 

Já não vai cantarolando aquela criança, sentada no beiral da porta, onde todos os dias parecia se deixar perder, por entre melodias intermitentes.

Vai ficando o silêncio, o vazio de vozes, de vida, de um descompassado existir.

Uma montanha de cores, de cheiros, marcando as viagens de tamanhos caminhos, disposto através do olhar daquele menino, pedaço de vida sem igual.

Ali sentado, onde outrora estava, repito estava, apenas se encontra a memória daqueles que por ali passavam, sempre apressados, desatentos...

Essa memória desatenta, mas que melodiosamente era despertada por pequenos acordes, do acordeão encardido, raspado, vivido.

Para onde terás ido?

Porque nunca ninguém parou, para te perguntar?

Nessa ausência, impregnada de nada, vazia, a ferros arrancada das profundezas desta oca Humanidade, vai desalmadamente carregando de arrependimento, os que deixaram de ouvir, o pequeno trautear daquela voz infantil, tristonhamente irrequieta.

O mundo avança, o tempo voa...

E mais vazia aquela rua, mais despida aquela porta.

Já não vai cantarolando aquela criança!

Aquela criança, que poucos poderiam descrever, desatentos ao seu olhar, à expressão do seu rosto, à imensa vontade de ser mais um, como nós.

Mas aquele cantarolar, aquela tristeza inerente à sua voz, tristeza perdida de um destino amargo, essa...

Essa grita ao mundo, as palavras que ainda ecoam através do vento, naquela ruela, naquela porta, naquele pedaço de mundo.

Para onde foste, pequena criança?

Para onde foste?

 

 

Filipe Vaz Correia

 

 

 

 

01.12.17

 

Era uma vez um tigre, que era todo laranja...

Um dia ele perguntou à cobra:

- O que é que acontece se tu me morderes?

- Tu nem queiras saber! Respondeu-lhe a cobra.

- Eu quero muito saber! Insistiu o Tigre.

- Está bem... Disse a cobra.

- Se eu te morder, tu que és vegetariano, ficarás com riscas e carnívoro! Acrescentou a cobra.

- Então morde-me! Disse o Tigre.

E ela mordeu-o...

Foi assim que os tigres ficaram com riscas e se tornaram carnívoros.

 

 

Matilde Bessa, minha sobrinha no seu primeiro conto, aos 8 anos.

 

 

 

 

17.10.17

 

Como confiar em alguém?

Como saber que é essa a pessoa, em quem poderás confiar?

Questões difíceis, atormentadoramente difíceis e que desnudam a essência duvidosa do sentimento Humano...

Não tenho muitos amigos, direi mesmo que tenho poucos, no entanto, conheço muitas pessoas, gente que aprecio, com quem simpatizo, com quem troco sorrisos e graçolas, em ambiente descontraído, confiante, por vezes intimista.

Mas confiarei nessas pessoas?

Nunca...

Jamais!

Para mim, essa questão nunca me acrescentou dúvidas, provocou hesitações, interrogações da alma...

Sempre tive a noção até onde poderia ir a minha entrega emocional, o desnudar da minha verdadeira alma, essência das minhas fraquezas, sinceras fragilidades.

Tenho verdadeiramente poucos amigos na vida, poucas pessoas em quem depositaria a minha vida, o meu coração...

Sem nunca esquecer aquele amigo que perdi há mais de vinte anos.

Amigos em quem confio sem barreiras, sem máscaras, sem timidez, completamente entregue à essência, do meu verdadeiro eu.

No mundo de hoje, onde as pessoas têm mil amigos, vinte mil gostos ou coisa que o valha, contenta-me saber que através de um olhar alguém me reconhece, entende o que sinto, sente o que por vezes, ainda não entendi...

A amizade para mim é isso mesmo, o abraçar para lá do entendimento, estar presente na ausência do questionamento, questionar sem deixar de estar ao lado.

Este texto é uma homenagem a essas poucas pessoas que me pertencem, assim como, também eu sou parte deles, na confiança, na extrema entrega e essencialmente na infindável forma de amar...

Pois a amizade, nada mais é do que uma bela forma de amor, incondicional, emocional, eternamente leal...

Eternamente presente.

 

 

Filipe Vaz Correia

 

 

13.09.17

 

Se um dia me faltasse o respirar, num momento tão inusitado como inesperado, o que faria eu?

De quem me recordaria?

Para onde fugiriam as inquietações, da alma minha?

Para onde fugiria eu?

Questões que apoquentam a escrita livre de uma personagem...

Por vezes o olhar, meio perdido, indescritível sensação, meio interrogação, acaba por não descodificar a alma desnudada, embrenhada na imensidão de dúvidas que acabam por atormentar a mente.

Será possível um coração, erradamente ter encontrado uma parte de si, que infinitamente não existe?

Será que o amor já não se reconhece?

Tantas e tantas questões.

Neste dilema existencial, nesta busca por uma resposta que acalme a alma pequena, a menor inquietude do coração, se interroga o espírito...

Se questiona o destino, infindável procura da felicidade perdida, perdidamente silenciada por essa tristeza que impele a escrita, escrevinhadamente desencontrada nessa angustia maior, que me pertence.

Reconhecerás, o teu outro eu?

Saberás como o encontrar?

Ou por alguma razão, se diluirá nas nuvens impostas de uma madrugada adiada, sem explicação, inexplicada vontade descrita no tempo?

Talvez passe esta vida e muitas outras, e depois outra, e outra...

Talvez passem mais vidas até que nos reencontremos, nesse misto de morte e amor, de tempo e sofrimento, de loucura e esquecimento, esperando em cada linha deste texto que não volte a florir o campo...

Não volte a brilhar o sol...

Não volte a nascer a esperança...

Que não volte eu, a reencontrar tamanha vontade de sofrer.

 

 

Filipe Vaz Correia

 

 

27.05.17

 

Era uma vez um menino impregnado de esperança, amarrado aos seus livros ansiando encontrar naquelas palavras algum conforto para a sua inquieta insatisfação...

O seu quarto era poiso de muitos mundos, guardava muitos segredos, muitas vontades, muitos sonhos, fechados por trás da porta que o separava do resto da casa.

Os seus avós, velhinhos, não sabiam que dentro daquelas paredes o seu neto podia esvoaçar por locais desconhecidos, encontrar destinos inimagináveis, reencontrar rostos perdidos.

Podia até sonhar...

Sonhando que a eternidade lhe ofereceria o direito de ter sempre perto de si aqueles que mais amava, aqueles que mais amou, aqueles que amaria para sempre.

O tecto do seu quarto tinha por vezes nuvens cinzentas, outras vezes um radioso sol, as paredes estavam cheias de árvores pejadas de animais e o chão...

Por vezes o chão parecia desaparecer para que ele pudesse levitar com as asas da sua imaginação.

Tantas e tantas vezes que ali, o mundo se tornava uma aventura, onde a qualquer momento surgia um amigo, se reerguia um inimigo, se degladiavam Reis e Príncipes, por Reinos e castelos.

Tantos anos se passaram desde que o menino cresceu, saiu e verdadeiramente voou, para deixar para trás essas aventuras que o moldaram no segredo da sua infância.

Até ao dia...

Esse dia em que regressou à mesma casa, ao mesmo quarto de sempre, sem os Avós, sem os quadros, sem os sonhos.

As paredes vazias reencontravam neste Homem, aquele menino que um dia ali morou, o mesmo menino que  um dia desejou que aquele reino, o seu quarto, fosse eternamente eterno.

E nesse momento, sabendo que o destino nem sempre cumpre as promessas sonhadas por uma criança, este antigo sonhador deixava apenas que as suas lágrimas pudessem brindar aquele chão de onde partira...

Já não conseguia sonhar mas ainda tinha memória para recordar a criança que um dia dentro dele esperançosamente habitou.

Habitando por entre as saudades desse mundo e desses Avós eternamente seus.

 

 

Filipe Vaz Correia

 

 

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